quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O direito de não amar


Lygia Fagundes Telles

Se o homem destrói aquilo que mais ama, como afirma Oscar Wilde, a vontade de destruição se aguça demais quando aquilo está amando um outro. O egoísmo, sem dúvida o traço mais poderoso de qualquer sexo, transborda então intenso e borbulhante como água em pia entupida, artérias e canos congestionados na explosão aguda: “Nem comigo nem com ninguém!” Deste raciocínio para o tiro veneno ou faca, vai um fio.
A segunda porta foi a que escolheu aquele meu colega de Academia quando descobriu que a pior das vinganças é não matar, mas deixar o objeto amado viver, viver à vontade, “pois que ela viva!” – decidiu ele na sua fúria vingativa.

Amou-a perdidamente. Acho que nunca vi ninguém amar tanto assim, talvez com a mesma intensidade com que ela amava o primo, disse isso mesmo numa hora de impaciência, estou apaixonada por outro, quer ter a bondade de desaparecer da minha frente? Mas o meu colega (vinte anos?) acreditava na luta e como ele lutou, meu Deus, como ele lutou! Tentou conquistá-la com presentes, era rico. Depois, com intermináveis poemas de amor, era poeta. Na fase final, no auge da cólera – era violento – começou com as ameaças. Ela guardou os presentes, rasgou os poemas, fez a queixa a um tio que era delegado da seção de homicídios e foi cair nos braços do primo sem os recursos da rima e dos diamantes, mas que conseguia fazê-la palpitar mais branca e perfumada do que a açucena do campo. 

Meu colega dava murros nas paredes, nos móveis. Puxava os cabelos, “ela não tem o direito de me fazer isso!” Com a débil voz da razão, tentei dizer-lhe que ela bem que tinha esse direito de amar ou não amar vê se entende essa coisa tão simples! Mas ele era só ilogicidade e desordem: “Vou lá, dou-lhe um tiro no peito e me mato em seguida!” – jurou. Mas a tantos repetiu esse juramento que fiquei mais tranquilizada   com a esperança de que a energia canalizada para o ato acabaria se exaurindo nas palavras. 

O que aconteceu. Uma noite me procurou todo penteado, todo contido, com um sorrisinho no canto da boca, meio sinistro, mas lúcido: “Vou ficar quieto, que se case com esse tipo, ótimo que se casem depressa porque é nesse casamento que está minha vingança. No casamento e no tempo. Se nenhum casamento dá certo, por que o deles vai dar? Vai ser infeliz à beça!” Pobre, com um filho debiloide  já andei investigando tudo, ele tem retardados na família, ih! O quando ela vai se arrepender, por que não me casei com outro? Vai ficar gorda, tem propensão para engordar e eu estarei jovem e lépido porque sou esportista e rico, vou me conservar, mas ela, velha, obesa, ô delícia. 

Há ainda uma terceira porta, saída de emergência para os desiludidos do amor, não, nada de matar o objeto da paixão ou esperar com o pensamento negro de ódio que ela vire uma megera jogando moscas na sopa do marido hemiplégico, mas renunciar. Simplesmente renunciar com o coração limpo de mágoa ou rancor, tão limpo que em meio do maior abandono (difícil, hem!) ainda tenha forças para se voltar na direção da amada como um girassol na despedida do crepúsculo. E desejar ao menos que ela seja feliz.



terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A História de Sherazade

Há muito tempo, havia um rei muito rico e muito poderoso: chamava-se Sharyar.
Um dia este rei descobriu que a mulher dele, quando ele viajava, o traía. É claro que o rei ficou furioso! Estes reis antigos eram terríveis. Sharyar ficou com ódio das mulheres.
Então resolveu fazer assim: casava todo dia com uma mulher nova, e no dia seguinte mandava matar. Assim não tinha perigo de ele ser traído. Já não havia mais moça solteira naquele lugar. E as que tinham sobrado se escondiam muito bem, com muito medo.
O primeiro-ministro precisava arranjar todo dia uma noiva nova para o rei. Mas um dia ele voltou para casa muito aborrecido porque não conseguiu descobrir moça nenhuma! Este primeiro-ministro tinha uma filha chamada Sherazade, que era muito bonita e, o que é melhor, era muito inteligente.
Nesse dia, vendo que o pai estava apavorado, com muito medo, Sherazade se ofereceu para casar com o rei. O ministro não quis nem ouvir falar nisto. Mas Sherazade pediu, insistiu, dizendo que ia salvar o reino, que ia dar um jeito no tal Rei.
O pai da moça acabou deixando ela ir, porque na verdade ele também não sabia o que fazer. O rei quis logo abraçar a moça, mas viu que ela estava chorando. Isso já fazia parte dos planos de Sherazedo.
 - O que é que aconteceu? – o rei perguntou.
- É que eu tenho uma irmã pequena – respondeu Sherazade – e eu queria que ela viesse dormir comigo na minha última noite.
O rei mandou buscar a irmã, Dunyazade.
De madrugada, antes que o rei se levantasse, Dunyazade pediu a Sherazade que, pela última vez, lhe contasse uma história. Sherazade pediu licença ao rei para atender a irmã. Sherazade era uma contadora de histórias incrível. Quem ouvia suas histórias ficava encantado e queria que ela contasse outras histórias e outras mais.
E Sherazade começou a contar uma história muito interessante, e o próprio rei ficou fascinado com o que ela estava contando. Então o sol começou a nascer. Entre os árabes, esta é a hora de fazer orações. Sherazade parou a história no meio.
Não se sabe se o rei estava muito interessado na história ou se estava interessado na moça. A verdade é que ele permitiu que Sherazade ficasse viva só mais um dia, apenas para acabar a história.
Mas as histórias da moça eram longas, e dentro das histórias havia outras histórias, e dentro destas outras, outras mais, de maneira que a narrativa foi se alongando e durou… mil e uma noites, ao fim das quais o rei já estava apaixonado por Sherazade e não quis mais saber de matá-la e nem de matar mais ninguém. 

(Rocha, Ruth. Histórias das mil e uma noites. São Paulo: FTD,1991)